domingo, 17 de abril de 2011

ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA EMPÍRICA: A CONTRIBUIÇÃO DE PAULO FREIRE

 Texto de   PAULO  MEKSENAS  - Sociólogo, mestre em didática e doutor em educação pela USP. Professor do Centro de Ciências da Educação da UFSC e autor de Cidadania, Poder e Comunicação (São Paulo: Cortez, 2002)



Paulo Freire (1921-1997)Falar de Paulo Freire leva a associar sua obra no entendimento dos métodos possíveis da Educação de Jovens e Adultos. Também e há um bom tempo é costume relacionar o autor às concepções dos métodos do ensino em escolas formais, desde os níveis que lidam com a infância até a universidade. Por outro lado, nem sempre se destaca a contribuição da obra de Paulo Freire nas concepções metodológicas e relacionadas à elaboração de pesquisas empíricas. Este último é o tema deste escrito.
Inicialmente é oportuno relembrarmos o significado do termo pesquisa empírica e, concisamente, definimos como: (1) o modo de fazer pesquisa por meio de um objeto localizado dentro de um recorte do espaço social. Por exemplo, a pesquisa empírica lida com uma escola e não com o sistema escolar ou, analisa mais as práticas sindicais e menos a estrutura sindical. Assim, além de implicar num recorte da totalidade social, a pesquisa empírica está centrada na escolha de aspectos das relações entre sujeitos. (2) A pesquisa empírica lida com processos de interação e face-a-face, isto é, o pesquisador não pode elaborar a pesquisa em “laboratório” ou em uma biblioteca – isolado e apenas com livros à sua volta. Nesta modalidade da elaboração do conhecimento, o pesquisador precisa “ir ao campo”, isto é, o pesquisador precisa inserir-se no espaço social coberto pela pesquisa; necessita estar com pessoas e presenciar as relações sociais que os sujeitos-pesquisados vivem. É uma modalidade de pesquisa que se faz em presença.
A pesquisa empírica se faz com metodologias determinadas. É importante não confundir metodologia com método. Quando falamos em método nos referirmos ao conjunto de procedimentos de nos ensinam a pensar ou a interpretar a realidade social de determinado modo e não de outro. Por exemplo, o marxismo é um método porque os conceitos que formam o marxismo nos levam a pensar e a interpretar o mundo por meio da noção de luta de classes. O mesmo pode ser dito do positivismo, que implica em compreender a realidade de forma diversa do marxismo, pela noção da qual a ciência e a prática científica ‘neutra’ são os “motores” da história. Desse modo, método se refere mais a um estilo de pensamento no campo das ciências humanas. Esse tema (o método de pesquisa) não é objeto deste artigo, podendo ser abordado em outra oportunidade. Neste escrito, denominamos por metodologia algo que é mais restrito do que um método. Se o método nos ajuda a pensar o mundo, a metodologia é o conjunto de estratégias para coletar informações acerca da realidade examinada pelo pesquisador e no contexto da realização de uma pesquisa empírica. Dentre as metodologias ao nosso alcance, os pesquisadores as agrupam em dois níveis: 1. Metodologias Qualitativas: Observação-participante. Entrevistas não-estruturadas ou depoimentos. 2. Metodologias Quantitativas: Entrevistas estruturadas. Questionários-fechados ou Enquête.
As chamadas metodologias qualitativas implicam num processo de coleta de dados em que o pesquisador passa um tempo maior em contato com a realidade examinada; seja observando/participando/dialogando/ouvindo bem como, integrando o espaço social que é o seu objeto de pesquisa. Já, nas metodologias quantitativas, o tempo de permanência do sujeito-que-pesquisa com os sujeitos-que-são-pesquisados é menor, pois o processo de coleta de dados ocorre por meio de instrumentos aplicados de modo rápido. A maior diferença entre esses dois níveis deve-se ao fato das metodologias qualitativas serem menos abrangentes em termos de extensão – envolvendo poucos sujeitos-pesquisados – mas, por outro lado, se aprofundam muito naquilo que examinam. Já, as metodologias quantitativas são mais extensas – ao envolverem muitos sujeitos investigados, porém, abordando-os de modo mais superficial. Em resumo, as metodologias qualitativas são menos extensas e mais intensas e as metodologias quantitativas são mais extensas e menos intensas. Por isso são duas metodologias mais complementares e menos opostas entre si.
Abordar a contribuição da teoria de Paulo Freire na questão das metodologias da pesquisa empírica implica em refletir acerca da relação que se estabelece entre o sujeito e o objeto da pesquisa, superando a noção comum do sujeito-que-pesquisa atuando sobre os sujeitos-que-são-pesquisados, de modo unilateral e vertical. Note bem o significado a idéia de “atuando sobre”. Em uma frase a preposição SOBRE indica, entre outras determinações sintáticas e semânticas, uma posição de privilégio de um substantivo por outro, desse modo poderíamos afirmar uma falsa superioridade do pesquisador que, atuando acima (distante dos outros); por cima (com superioridade frente aos outros); em cima (abafando os outros), enfim, sobre os sujeitos-pesquisados, revelaria uma posição de subalternidade destes últimos ao primeiro, prestando-se assim, mais às relações de dominação que à prática do conhecimento. Trata-se de pensar as interações entre o sujeito-que-pesquisa com os sujeitos-que-são-pesquisados de outra perspectiva e na horizontalidade dessa relação. Ambos são diferentes porque vêm de lugares sociais diversos; possuem saberes distintos e viveram experiências desiguais, porém, isso não significa que o sujeito-que-pesquisa seja melhor ou superior ao sujeito-que-é-pesquisado. Assim como o primeiro ensina e aprende com aquele que está na condição de pesquisado, este último também ensina e aprende com outro, que está na condição de pesquisador. Nos procedimentos de coleta de dados do pesquisador, os sujeitos pesquisados não podem ser reduzidos à condição de meros objetos. Mais do que um processo vertical de obtenção de informação, a relação do sujeito-que-pesquisa com o sujeito-que-é-pesquisado se torna um ato educativo[1]. Afirma Paulo Freire:
(...) a pesquisa, como ato de conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um lado, os pesquisadores profissionais; de outro, os grupos populares e, como objeto a ser desvelado, a realidade concreta. Quanto mais, em tal forma de conceber e praticar a pesquisa, os grupos populares vão aprofundando como sujeitos, o ato de conhecimento de si em suas relações com a sua realidade, tanto mais vão podendo superar ou vão superando o conhecimento anterior em seus aspectos mais ingênuos. Deste modo, fazendo pesquisa, educo e estou me educando com os grupos populares. Voltando à área para pôr em prática os resultados da pesquisa não estou somente educando ou sendo educado: estou pesquisando outra vez. No sentido aqui descrito pesquisar e educar se identifica em um permanente e dinâmico movimento (1983:36).
Pela palavra e pelo trabalho de rememoração o depoente/informante/entrevistado/observado não apenas revela a sua opinião, mais do que isto, encontra a oportunidade de indagar-se sobre o que lhe é perguntado. As questões de pesquisa passam a ser perguntas para que o sujeito-que-é-pesquisado possa pensar; lembrar; relacionar fatos e conscientizar-se, mesmo que essa tomada de consciência seja algo provisório e a ser questionado no futuro. Por exemplo, em pesquisa realizada pela historiadora, Elza Nadai, um grupo de professores aposentados e idosos, quando entrevistados em fins da década de 1980 lembraram das escolas do Ensino Secundário, em que lecionaram nas décadas de 1940 e 50[2]. Afirmaram à pesquisadora que, naquela época, os salários dos professores eram muito bons, porém, quando foram indagados se possuíam telefones ou automóveis, respondiam que não. De repente, em uma entrevista, a professora afirmou: pêra lá, os salários não eram tão bons assim, me enganei, lembrei que nem geladeira em casa eu tinha. Esse exemplo indica como a realização de uma entrevista é mais do que um momento de coleta de dados, é um momento de reflexão e como toda situação de reflexão é um contexto de construção da consciência política dos sujeitos envolvidos. Sabemos que, desse modo, a metodologia qualitativa na pesquisa empírica, ao estabelecer relações face-a-face do sujeito-que-pequisa com o sujeito-que-é-pesquisado, permite vínculos de reflexão entre as partes envolvidas porque estão todos em presença, isto é, frente-a-frente e em diálogo, por isso é que Paulo Freire afirma que fazer pesquisa educa.
Essa concepção da pesquisa, como momento de superação da consciência ingênua de mundo, pertence a uma longa tradição e que integra a história das classes trabalhadoras na modernidade. Em 1880, pouco antes de vir a falecer, o filósofo Karl Marx organizava uma grande enquête e cujo questionário deveria ser aplicado por Centrais Sindicais de toda a Europa e o seu resultado serviria de base à ação do movimento operário internacional. Com 101 perguntas, algumas delas merecem referência, como exemplo ao nosso raciocínio:
(...)
77 – Você conhece casos em que operários perderam o emprego porque foram introduzidas máquinas novas ou aperfeiçoamentos de um outro tipo?
(...)
79 – Sabe de algum caso de elevação dos salários em conseqüência dos progressos da produção?
(...)
82 – Existem, em seu oficio, associações operárias? Quem as dirige? Envie-nos os seus estatutos e regulamentos (reproduzido em THIOLENT, 1982: 254).
Notamos que essa qualidade de pergunta, contida na enquête proposta por Marx, conduz à possibilidade de reflexão daquele que a responde; uma reflexão capaz de gerar a tomada de consciência, pois, ao responder sobre as condições em que a renovação tecnológica produz o desemprego ou frente às possibilidades reais da fundação de associações operárias, é possível ao entrevistado rever-se na sua história de vida profissional e de classe. É apenas seguindo a tradição fundadora da ciência de classe que se faz possível perceber a pesquisa como atividade educadora e a educação como ato de pesquisa. E é nessa tradição que se insere a obra de Paulo Freire.
No âmbito de uma ciência de classe nasce a possibilidade de respeito e diálogo entre diferentes níveis do conhecimento. Aqui, ciência e senso comum não se sobrepõem um ao outro, mas complementam-se nas suas especificidades. Perceber a diversidade do conhecimento é condição fundamental para ver a pesquisa como ato educativo e vice-versa:
A curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor [pesquisador], tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o estímulo à capacidade criadora do educando [pesquisado]. Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando cuja "promoção" da ingenuidade não se faz automaticamente. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (FREIRE, 2004:29).
Avançado nesta discussão, devo indicar mais uma das contribuições de Paulo Freire e talvez a mais decisiva. Refere-se ao fato de criar, na década de 1970, as condições teóricas de afirmação da PESQUISA PARTICIPANTE, simultaneamente, com o sociólogo Colombiano Orlando Fals Borda. Nesta modalidade de investigação social alguns pressupostos são admitidos:
  1. A pesquisa deve servir aos sujeitos que fazem parte da realidade investigada e não apenas ser a pesquisa que serve ao pesquisador, à sua carreira, à sua ascensão acadêmica nas instituições. Por isso, é uma pesquisa que está mais fora do que dentro das Universidades e está mais dentro do que fora nos Movimentos Sociais.
  2. A pesquisa responde aos anseios de um projeto político e gerido por algum Movimento Social.
Aqui, novamente, vale um exemplo. Segundo Eder Sader[3], na década de 1970 e no vigor do Regime Militar, o Movimento do Custo de Vida (MCV) ou Contra a Carestia, na cidade de São Paulo, deveu parte do seu respaldo à realização de pesquisa participante, pois as donas-de-casa e integrantes do Movimento elaboravam planilhas econômicas em que fundamentavam a existência de uma forte e crescente inflação, fato que era solenemente negado pelos índices oficiais e disposto pela Ditadura. Ora, a construção dessa medida da variação do índice de preço ao consumidor foi possível dada à contribuição de estudantes que, por meio da Pastoral Universitária, estavam inseridos nas chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e, atenderam à solicitação formulada pelos próprios sujeitos daquele Movimento Social, portanto, de dentro-para-fora e nunca de fora-para-dentro. Em outras palavras a pesquisa torna-se participante porque nunca invade um Movimento Social, mas vai ao seu encontro por solicitação dos seus integrantes. Como diz o antropólogo:
Conhecer a sua própria realidade. Participar da produção deste conhecimento e tomar posse dele. Aprender a escrever a sua história de classe. Aprender a reescrever a História através da sua história. Ter no agente que pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma gente aliada, armada dos conhecimentos científicos que foram sempre negados ao povo, àqueles para quem a pesquisa participante – onde afinal pesquisadores-e-pesquisados são sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes – pretende ser um instrumento a mais de reconquista popular (BRANDÃO, 1983:10).
Assim é possível observar, aquele que realiza uma pesquisa participante é porque, antes de ser pesquisador, está comprometido com os projetos das classes dominadas e exploradas. Como disse Marx, no Terceiro Manuscrito Econômico-filosófico, uma base para a vida e outra para a ciência constituem em princípio uma mentira (2002:145), isto é, uma ciência que não serve à vida, deve ser banida. Por isso, toda pesquisa participante está vinculada a um projeto de história, que supera condições sócias contemporâneas. Paulo Freire também o afirma:
Não é, por exemplo, de interesse da classe dominante, numa sociedade capitalista, que se implique o Povo como sujeito participante do seu próprio desenvolvimento. Numa tal perspectiva, a pesquisa participante não tem por que envolver os grupos populares como sujeitos de conhecimento e a formação do trabalhador viram “treinamentos da mão-de-obra”. Treinamentos para uma maior rentabilidade da força de trabalho e em cuja prática a tecnologia é vista como neutra ou “a serviço sempre da humanidade”. Não cabe, por isso mesmo, nesta visão conservadora, a discussão do processo do trabalho em busca de uma compreensão crítica do mesmo (...) Se é incoerente que um profissional reacionário, elitista, envolva os grupos populares como sujeitos da pesquisa em torno de sua realidade, contraditória também é que um profissional chamado de esquerda descreia das massas populares e as tome como simples objetos de seus estudos ou de suas ações (FREIRE, 1983:36).
E um pouco mais adiante, Paulo Freire adverte (...) se o objetivo é a criação de uma sociedade socialista, a pesquisa aqui requer métodos participantes (1983:37). Desse modo, é fato que a PESQUISA DE CLASSE afirmar-se-á por meio de um novo projeto de sociedade. Paulo Freire indica, assim, que a ciência deve ser reformulada pelo direito que os trabalhadores têm de afirmarem-se como os co-responsáveis pela sua elaboração e não apenas por acessarem aos seus resultados. Na pesquisa participante o acesso à ciência, por parte dos trabalhadores, não visa ao seu “treinamento como mão-de-obra”, mas à possibilidade de mudar radicalmente a sociedade. Isso pressupõe como vimos uma nova relação entre o sujeito-que-pesquisa com o sujeito-que-ao-ser-pesquisado torna-se também o trabalhador-que-igualmente-pesquisa-com-o-pesquisador, respeitando-se as singularidades de cada um. E isso implica em admitir que,
(...) os pesquisadores participantes precisam partir da noção de que a cultura (ou a tradição) do camponês ou do operário não é conservadora como freqüentemente se supõe, mas é de fato realista e dinâmica.
Há elementos positivos e negativos na cultura e na tradição camponesa e operária, com tendências para mudança social e aberta às possibilidades de transformação, tanto no conhecimento, quanto na ação. Isto é evidente. Senão, como poderíamos explicar tantas revoltas que ocorreram na história mundial? (BORDA, 1983:51).
Concluímos que a pesquisa participante se faz com um novo projeto de história e de sociedade, em que trabalhadores e intelectuais se transformam de conservadores a progressistas porque convivem [com-vivem], isto é, ao estarem um-com-o-outro podem, juntos, indagar; problematizar; educar; pesquisar; conhecer; re-educar e transformar.
__________
[1] Para aprofundar a discussão da relação entre ensino e pesquisa; pesquisador e pesquisado; o professor e a pesquisa, consultem: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
[2] Trata-se do estudo de NADAI, Elza. A educação como apostolado: histórias e reminiscências (São Paulo 1930 – 1970) 450 p. Tese (livre docência) Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo: São Paulo, 1991.
[3] Trata-se do estudo de SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970 – 1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988.



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